A segurança jurídica na Constituição Federal
Por Ilton Norberto Robl Filho e Marco Aurélio Marrafon
1 – Constituição. O direito fundamental à segurança encontra-se previsto nos artigos 5º, caput, e 6º, Constituição de 1988. Em verdade, o Estado democrático de Direito, nos termos do artigo 1º, caput, CF/88, possui na sua estrutura a promoção dos direitos fundamentais, a legalidade e a separação dos poderes, que são elementos relevantes para concretização da segurança[3].
Por sua vez, o direito fundamental à segurança é dotado de aspectos individual, coletivo e difuso. A tradição constitucional brasileira reconhece o direito fundamental à segurança individual, conforme se observa no artigo 179, caput, Constituição de 1824. Apesar da inexistência da previsão expressa sobre a tutela da segurança individual na CF/88, a topografia (caput, do artigo 5º, CF/88) e o reconhecimento de inúmeros direitos em espécie acerca da segurança individual impõem a titularidade do direito fundamental à segurança aos indivíduos, sendo exemplo de direito em espécie a vedação à retroatividade da lei penal com exceção da situação de produzir benefício ao réu, de acordo com XL, artigo 5º, CF/88.
Também são titulares desse direito fundamental os coletivos e toda comunidade. Nesse sentido, as ações constitucionais são importantes instrumentos para proteção e segurança dos direitos e interesses, sendo garantias constitucionais o mandado de segurança coletivo (artigo 5º, LXX, CF/88) e a ação civil pública (artigo 127, III, CF/88) que tutela os direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos. No âmbito do direito social à segurança (artigo 6º, CF/88), vislumbra-se a segurança pública, a qual promove a incolumidade das pessoas e do patrimônio, além da promoção da ordem pública em conformidade com o respeito aos direitos fundamentais, segundo o art. 144, CF/88. O direito fundamental social à segurança é integrado ainda pela seguridade social, que possui como função constitucional efetivar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, conforme o artigo 194, caput, CF/88.
De outro lado, a dimensão subjetiva consiste no conjunto de faculdades e direitos que é atribuído aos titulares desse direito fundamental, sendo garantido tanto pelo direito mãe à segurança (artigo 5º, caput, e 6º, CF/88) como por diversos direitos fundamentais em espécie que também tutelam esse valor. Acerca dos direitos fundamentais em espécie, indicam-se: a) direito de que apenas a lei pode obrigar ou proibir a prática de uma ação ou omissão (artigo 5º, II, CF/88), b) proteção da propriedade com função social (artigo 5º, XXII e XXIII, CF/88), c) direito de herança (artigo 5º, XXX, CF/88), d) direito de petição e direito à tutela jurisdicional tempestiva, adequada e célere (artigo 5º, XXXIV, ‘b’, XXXV e LXXVIII, CF/88), e) direito à coisa julgada, ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido (artigo, XXXVI, CF/88), f) vedação de juízo e tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII, CF/88), g) garantias penais e processuais penais como legalidade no direito penal (artigo 5º, XXXIX, CF/88) e h) e outros direitos fundamentais em espécie.
A dimensão objetiva desse direito impõe a observância da segurança pelos agentes, órgãos e poderes estatais nas suas atividades cotidianas, assim como é empregada pela interpretação jurídica na concretização e na aplicação do ordenamento jurídico, incidindo nas relações privadas pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Mesmo com a enorme relevância, por muito tempo, os estudos constitucionais deixaram em segundo plano as reflexões sobre a segurança nos fenômenos jurídicos e sociais[4].
2 – Fundamentos. Na modernidade, há a adoção da clássica teoria da separação dos poderes, segundo a qual cumpria ao Legislativo elaborar a ordem jurídica geral e abstrata e ao Judiciário apenas aplicá-la aos casos concretos com o mínimo de interferência possível na determinação do legislador. Nesse período do alvorecer do constitucionalismo, é predominante o viés liberal de proteção do indivíduo contra o Estado, da democracia representativa, da defesa dos direitos fundamentais individuais e da não intervenção na economia e na esfera privada, cabendo ao direito apenas regular o mínimo necessário para a convivência pacífica dos diferentes espíritos e projetos de vida humanos (NOVAIS, 2006, p. 59 e ss.).
Eis o cerne da legalidade e da segurança jurídica moderna: permitir que os cidadãos conhecessem anteriormente as condutas vedadas e as consequências jurídicas de seu descumprimento, cabendo-lhes o exercício do livre arbítrio e da autonomia para cumprir ou não os ditames legais, respondendo por eventuais sanções. Com Cartas sintéticas e pouco interventivas, o direito acabou concentrado na legislação infraconstitucional, em especial, nas grandes codificações. O conceito de norma jurídica restou confinado à dimensão das regras legais, vinculando os julgamentos. Já os princípios seriam diretrizes políticas, com baixa ou nenhuma normatividade, cabendo aplicação subsidiária no preenchimento de lacunas.
Por sua vez, a guinada filosófica dá ensejo ao racionalismo e cientificismo que irão influenciar toda a epistemologia jurídica da modernidade em torno da busca da confiabilidade, estabilidade e certeza no direito, formando uma tríade de conceitos que compõe a significação da noção de segurança jurídica. Para alcançá-la, a teoria do direito se reduziu a uma teoria analítica da norma e do ordenamento (as grandes codificações), de modo a atingir o status de ciência cujo objeto era análise das normas jurídicas individualmente tomadas ou em seu conjunto, a partir de critérios de validade, consistência lógica e coerência interna (MARRAFON, 2018, p. 59 e ss.).
Do ponto de vista do método, desenvolveu-se a teoria hermenêutica tradicional, subdividida em um tríplice processo i) teoria da interpretação, ii) teoria da aplicação, que envolve a conexão entre o sentido auferido da lei e o do fato, em uma combinação que levasse à conclusão contida na decisão, como, por exemplo, o processo de subsunção e iii) teoria da integração do Direito. Assim, é possível constatar que a segurança jurídica almejada deitava raízes i) em uma teoria do Estado de Direito e da legalidade baseada em uma rígida separação de poderes e na distinção entre o âmbito político e o jurídico, ii) na adoção do conceito de norma jurídica enquanto regra e de ordenamento como um conjunto de regras, iii) no fundamento filosófico do paradigma da filosofia da consciência, iv) na redução do direito a uma teoria analítica de cunho científico e v) em uma teoria hermenêutica racionalista e subdividida em etapas cientificamente demonstráveis.
O dilema contemporâneo é que nenhuma dessas cinco premissas premissas subsiste.
O pensamento constitucionalista brasileiro, a partir da Constituição de 1988, paulatinamente consolidou a tese de que o Poder Judiciário, enquanto guardião da Constituição, tem o poder-dever de limitar os outros Poderes, quando há violação por ação ou omissão dos ditames constitucionais. Elevou-se a estatura do Poder Judiciário em relação aos demais, de modo a flexibilizar a separação dos poderes clássica e ensejar a progressiva confusão entre o campo jurídico e o campo político.
Assim, para além da aspecto liberal de proteção ao indivíduo (dimensão negativa), assumiu-se a tese de que o Poder Judiciário deve contribuir para a concretização dos direitos fundamentais sociais, seja por meio de intervenções diretas ou por controle da omissão dos demais poderes (dimensão positiva). Em consequência, difundiu-se no imaginário jurídico brasileiro uma certa leitura substancialista da concretização da Constituição, o que pavimentou o terreno para incursões ativistas, tópicas e voluntaristas, em detrimento da cultura da preservação da legalidade e da coerência jurisprudencial.
Nesse movimento, fortaleceu-se a força normativa dos princípios constitucionais, que passaram a fundamentar decisões e serem aplicados diretamente enquanto fonte do direito, inclusive com possibilidade de afastamento da regra legal no caso concreto sem que haja inconstitucionalidade evidenciada. Ou seja, afasta-se a lei em nome de um princípio ante a alegadas exigências de justiça do caso concreto (derrotabilidade), ainda que, em geral, a lei não esteja eivada de vício de inconstitucionalidade e permaneça vigente[5].
Demonstrada a insustentabilidade das duas primeiras premissas, o cenário não se revela diverso em relação às demais.
O paradigma da filosofia da consciência restou superado enquanto fundamento filosófico. A crítica ao racionalismo e a emergência do paradigma da linguagem[6] levaram à denúncia da dimensão existencial e histórica do sujeito, que não mais se apresenta como razão pura, neutra e imparcial. A filosofia promoveu uma guinada linguístico-filosófica em que, ao invés do sujeito, a linguagem se torna a categoria de trabalho para a compreensão da racionalidade, em dimensão hermenêutica e também lógico-formal (Stein, 1996).
Assim, a crítica antimoderna de Nietzsche se transformou em vetor para a formação de um ambiente niilista que tem fomentado o que se entende como pós-verdade processual. Nesse ambiente niilista formou-se a era das narrativas, a qual enseja o voluntarismo na práxis judicial e inibe incursões de epistemologia jurídica, solapando, assim, a quarta e a quinta premissas ora estabelecidas. A noção de ordenamento jurídico fechado necessária à garantia do status científico do direito se transformou e deu lugar a um sistema aberto de princípios e regras (Marrafon, 2018, p. 124 e ss.), aumentando a incerteza no processo decisório, uma vez que tanto princípios quanto as regras se tornaram verdadeiros topoi argumentativos para justificar as decisões judiciais, favorecendo a realização tópico-argumentativa do direito, sem metodologia e sem hierarquia normativa clara e estável[7].
Apesar dos inúmeros esforços contemporâneos (Dworkin, 2014; Alexy, 2019), enquanto tentativas de racionalizar o processo decisório, a contraposição de narrativas e a pós-verdade que levam ao voluntarismo judicial se tornam antíteses à ideia de segurança jurídica, além da forte crise na teoria das fontes (Marrafon, Robl Filho, 2014) e do predomínio do sincretismo metodológico na applicatio judicial (Rosa, 2006).
3 – Conclusão.No contexto de crise das fontes e de sincretismo metodológico, corretamente o Código de Processo Civil de 2015 (NCPC) inovou e estabeleceu regras que, em tese, permitem a controlabilidade da decisão judicial, notadamente em casos de conflitos de princípios e ponderação (§2° do artigo 489, NCPC), bem como determinam o dever de os tribunais uniformizarem “sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (caput, artigo 926, NCPC). Dessa forma, o Excelso Supremo Tribunal Federal (2019) entendeu que “ao consagrar diversos mecanismos para o sobrestamento de causas similares com vistas à aplicação de orientação uniforme em todos eles (artigo 1.035, § 5º; artigo 1.036, § 1º; artigo 1.037, II; artigo 982, § 3º), conferiu primazia à segurança jurídica, à estabilização da jurisprudência, à isonomia e à economia processual”.
Ainda, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro com a redação da Lei Federal nº 13.655/2018 concretizou e densificou o direito fundamental à segurança, estabelecendo a) a obrigatoriedade de as decisões administrativas e judiciais considerarem as consequências práticas, quando interpretarem valores jurídicos abstratos (artigo 20), e b) que as decisões administrativas e judiciais que fixem interpretação ou orientação nova prevejam regime de transição (artigo 23). Observa-se majoritariamente a desconsideração inconstitucional dessas normas. De outra banda, o Superior Tribunal de Justiça (2018) levou a sério a segurança jurídica: “A LINBD (…) também passou a dispor expressamente sobre a segurança jurídica relacionada à atuação das esferas administrativa, controladora e judicial”. Há um longo caminho para o substancial respeito ao direito fundamental à segurança jurídica, mas as bases teóricas e as estruturas do direito constitucional positivo estão postas.
BIBLIOGRAFIA.
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3] Cf. Novais, 2019, p. 147-169; 219-289; Torres, 2015, p. 125.
[4]Cf. Sarlet, 2012; Pérez Luño, 2000; Barboza, 2014.
[5] Cf. Serbena, 2012.
[6] Cf. Habermas, 1990.
[7] Cf. Viehweg, 1979.
Texto originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-21/observatorio-constitucional-seguranca-juridica-constituicao-federal