O CNJ e o compromisso do Judiciário com a nova arquitetura dos direitos humanos
Resolução 364 é forte indicação de que Judiciário pretende atuar de modo efetivo na proteção de direitos humanos
Por INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES, MELINA GIRARDI FACHIN e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI
A Resolução 364 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em 12 de janeiro de 2021, criou a Unidade de Monitoramento e Fiscalização das decisões e deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos envolvendo o Estado brasileiro, vinculada ao Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF).
Pela Resolução aprovada, caberá à Unidade de Monitoramento e Fiscalização, inter alia, manter banco de dados com as decisões da Corte Interamericana envolvendo o Brasil, providenciar o monitoramento e fiscalização do cumprimento das sentenças, medidas provisórias e opiniões consultivas da Corte Interamericana, sugerir propostas de melhor atendimento ao cumprimento de suas deliberações, verificar a tramitação dos processos e procedimentos relativos à reparação material e imaterial das vítimas de violações a direitos humanos determinadas pela Corte Interamericana, relatar anualmente as providências adotadas pelo Brasil para o cumprimento de tais decisões, bem assim acompanhar a implementação de parâmetros de direitos humanos estabelecidos pela Corte ou de outros instrumentos internacionais que que estabeleçam obrigações internacionais ao Brasil no âmbito dos direitos humanos (art. 2º).
Como se nota, a iniciativa é muito bem-vinda e consolida, ainda mais, a mirada multinível que o direito constitucional brasileiro aceitou pela própria opção constituinte, ao dar lugar de destaque ao direito internacional dos direitos humanos na nossa ordem jurídica interna, conforme expressamente prevê a cláusula de abertura contida no art. 5º, parágrafo 2º, segundo a qual os direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros” decorrentes de tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte.
Vivemos a emergência de um novo paradigma jurídico que conclama a necessidade dos diálogos entre as ordens interna e internacional. Presenciamos as modificações do direito internacional, a renovação do direito constitucional e, com isso, o redesenho do direito público do século XXI. Essa lógica “dialógica” começa, doravante, a ser também compreendida pelos órgãos de controle brasileiros, como é o caso do CNJ.
Mais do que monismos e dualismos e de regras obsoletas de resolução de antinomias baseadas num “monólogo” jurídico, o que agora se presencia é a emersão de uma nova arquitetura que não vê dentro e fora, mas, sim, coloca temas e sujeitos que transversalmente desafiam a nossa compreensão ainda fechada, dogmática e estática – ainda calcada no state centered approach.
Se até bem pouco tempo a lógica da resolução de antinomias entre o direito internacional e o direito interno era baseada nos critérios “clássicos” (hierárquico, da especialidade e cronológico) postos à disposição dos operadores jurídicos, hodiernamente o arsenal protetivo – proveniente de tratados internacionais de direitos humanos – colaciona novos elementos de resolução de controvérsias, que não se excluem mutuamente, mas são complementares uns dos outros. Nesse sentido, a crescente internacionalização dos direitos humanos acaba impactando no direito interno, o direito internacional se associa à ordem doméstica e essa nova ordem jurídica surge exuberante dessa catarse.
Doravante, como se nota, os direitos humanos ganham novos contornos e um colorido renovado provindo da interação da ordem internacional com a interna, no ensejo de melhor proteger o ser humano sujeito de direitos.
Essa nova ordem multifacetada – que agrega as normas internacionais e as normas internas – abandona a ideia de espacialidade única para trazer à luz a conexão plúrima de normas internacionais e internas, que poderão atuar em conjunto (e, portanto, simultaneamente) em prol da proteção dos direitos humanos.
Nesse sentido, novos espaços (da ordem interna e internacional) e atores (seja no reconhecimento das novas responsabilidades internacionais em relação a entes não estatais como as empresas; seja na incorporação de outros sujeitos de proteção, superando o paradigma antropocêntrico) demandam outra mirada da proteção dos direitos, do direito constitucional e do direito internacional, sem a qual as violações de direitos que a contemporaneidade apresenta não logram ser resolvidas integralmente. Assim, a restauração da coerência, no plano internacional, tem por consectário a abertura da ordem interna para o diálogo com a sociedade internacional, transformando as aberturas axiológicas em “razão de existir” do mundo contemporâneo.
Ademais, diante dessa ordem emergente se forma uma normatividade complexa impactada pela internacionalização e regionalização dos direitos humanos com o foco nas vítimas e nas vulnerabilidades que se pretende proteger. Trata-se do human centered approach, segundo o qual são os indivíduos e coletividades a se protegerem que iluminam a articulação dos diversos planos protetivos (global-regional-local) ao entorno da primazia da norma mais favorável à pessoa (princípio pro persona).
No âmbito interno, o direcionamento das decisões e deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao Estado brasileiro não pode ser compreendido como de atuação exclusiva do Poder Executivo, no cumprimento das medidas internacionalmente estabelecidas. A complexidade das situações de violações a direitos humanos, especialmente nas democracias latino-americanas, que lutam para se consolidar em cenários de desigualdade social, econômica e cultural, exige o envolvimento dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na realização de tarefas capazes de reverter a situação de inconvencionalidade identificada pelos órgãos de controle internacional, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Muitas vezes, é preciso que os desenhos e a implementação de políticas públicas sejam alinhados à edição de leis e à garantia de institutos que permitam a vigilância e participação da sociedade, com amplo acesso à justiça e com a obtenção de respostas judiciais céleres, pautadas na perspectiva e nos pilares dos direitos humanos.
A previsão, na Resolução 364, da realização pelo DMF, de atividade de monitoramento e fiscalização das decisões e deliberações da Corte Interamericana, é forte indicação de que o Poder Judiciário pretende atuar de modo efetivo na proteção dos direitos humanos. Essas boas expectativas se pautam no reconhecimento da DMF como uma unidade do CNJ que funciona com excelência e de forma estruturada, com capilaridade e incidência em todo território brasileiro, por interfaces congêneres em todos os tribunais (os GMF – Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas).
Nesse sentido, vale destacar o relevante trabalho do DMF, de sistematização e divulgação de dados que permitem compreender o contexto da pandemia, tais como (i) o uso de recursos federais no combate à Covid-19, (ii) ações dos comitês locais de enfrentamento e a destinação de penas pecuniárias, bem como (iii) dados sobre equipamentos de prevenção, alimentação, materiais de higiene e de limpeza, medicamentos e testes sobre contágio.
Há um último ponto que merece ser iluminado: a referida Resolução tem uma ligação intrínseca e indissociável com o compromisso que o Judiciário assumiu com os chamados “17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) e abre mais uma porta para valorização e cumprimento da Meta 9 do mesmo conselho, que prevê a integração da Agenda 2030 da ONU pelo Poder Judiciário. Dentre os 17 ODS, consagrou-se, em seu ODS 16, o compromisso de promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
Algumas metas deste ODS foram adequadas à realidade brasileira, como a de número 16.3 (Fortalecer o Estado de Direito e garantir acesso à justiça a todos, especialmente aos que se encontram em situação de vulnerabilidade), a de número 16.6 (Ampliar a transparência, a accountability e a efetividade das instituições, em todos os níveis), a de número 16.a (Fortalecer as instituições relevantes, inclusive por meio da cooperação internacional, para a construção de capacidades em todos os níveis, em particular nos países em desenvolvimento, para a prevenção da violência, do crime e da violação dos direitos humanos) e a de número 16.b (Promover e fazer cumprir leis e políticas não discriminatórias e afirmativas).
Muitos dos pontos aqui destacados encontram pouso nos consideranda que levaram o CNJ a adotar a bem-vinda Resolução 364, o que, a um só tempo demonstra que o órgão de controle brasileiro está afinado com os preceitos internacionalmente definitos e, além disso, toma atitudes proativas para o fim de lograr conjugação dos ditames internacionais estabelecidos com a aplicabilidade na ordem doméstica.
Tout court, o que se tem pela frente é o grande desafio de incorporar os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos na jurisdição brasileira, numa conjugação de esforços na cooperação para a superação das violações graves de direitos humanos ocorridas todos os dias no Brasil. Essa tarefa, que já era necessária, foi amplificada e se revelou urgente, com a pandemia da Covid-19. Neste cenário, sempre com soluções articuladas e dialogadas, o desenvolvimento sustentável parece ser a trilha mais segura a ser seguida pelo sistema de justiça, para a abreviação dos pontos tortuosos que enfrentaremos no caminho pós-pandêmico.
INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES – Desembargadora do TRF da 3ª Região. Doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.
MELINA GIRARDI FACHIN – Advogada, professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, membra consultora da Comissão da Mulher Advogada e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, ambas da OAB/PR .
VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI – Professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), membro consultor da Comissão Especial de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB, pós-doutor em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Originalmente publicado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-cnj-e-o-compromisso-do-judiciario-com-a-nova-arquitetura-dos-direitos-humanos-16022021